Paulo Capel Narvai
é
Cirurgião-Dentista Sanitarista. Especialista, Mestre, Doutor e Livre
Docente em Saúde Pública. Professor Titular de Saúde Pública da
Universidade de São Paulo (USP). Autor de ‘Odontologia e saúde
Bucal Coletiva’ (Ed.Santos) e de ‘Saúde Bucal no Brasil:
Muito Além do Céu da Boca’ (Ed.Fiocruz) dentre mais de uma
centena de obras científicas. |
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Artigo
- Paulo Capel Narvai
Edição 254 -
17/12/2018
Por que
uma Lei para a
Saúde Bucal no SUS?
Circulou,
na segunda semana de dezembro de 2018, praticamente às vésperas do recesso
do Congresso Nacional e o encerramento da legislatura 2014-2018, a notícia
de que o Projeto de Lei (PL) nº 8.131, proposto por Humberto Costa em 2017
no Senado Federal, chegara finalmente à Comissão de Constituição e Justiça e
de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados. Após a aprovação no Senado e em
duas das três Comissões por onde teria de tramitar na Câmara, onde foi
proposto pelo deputado Jorge Solla, o PL aguarda, agora, a designação de
Relator pela CCJC, a última comissão pela qual, necessariamente, teria de
ser examinado na Câmara. Antes, o PL fora aprovado, por unanimidade nas
comissões de Seguridade Social e Família (CSSF), em 8/11/2017, e de Finanças
e Tributação (CFT), em 12/12/2018. Se aprovado nas três comissões da Câmara,
o PL não precisará de votação em plenário e seguirá diretamente para a
sanção presidencial. Tudo indica que isto acontecerá, embora não seja
possível prever quando.
A notícia
foi bem recebida no meio odontológico em todo o País, mas para alguns que
não vinham acompanhando o processo, ocorreu perguntar: “Mas a saúde bucal
não está no SUS? Por que é preciso uma lei como esta?” São perguntas
pertinentes, claro.
É certo
que quando se fala em “saúde bucal” faz-se um recorte anatômico arbitrário,
com a finalidade de facilitar a comunicação. Como diz o povo, a saúde
“começa pela boca” e decerto que não há saúde, sem saúde bucal. De onde se
conclui que se o nosso Sistema Único é de Saúde, logo precisa contemplar
tudo o que se relaciona também com a “saúde bucal”. Ocorre que ainda que
seja assim e que haja lógica nesta racionalidade, a vida é mais complicada e
cheia de contradições. Na prática, a histórica “separação” entre medicina e
odontologia foi conformando, no imaginário social, a associação da medicina
com a resolução de doenças e da odontologia com a mera extração de dentes
“apodrecidos” pela cárie ou “amolecidos” por gengivas fracas (nesse
imaginário, ambas as condições patológicas sequer são percebidas como
enfermidade).
E o
imaginário social influencia fortemente gestores e mesmo profissionais de
saúde. Leva muitos a crer que ações e serviços públicos odontológicos são
supérfluos, servindo apenas para consumir recursos públicos escassos. Tendo
de lidar com tantos e urgentes problemas de saúde pública, gestores resistem
muito, de modo geral, a alocar recursos para a saúde bucal (admitindo,
supostamente, que problemas de saúde bucal não seriam problemas de saúde
pública). Pouco importa, nesses casos, a existência de evidências
científicas que lhes recomende tomar decisões em outros rumos.
Por essas
razões, não tem sido nada fácil enfrentar os desafios surgidos desde a
criação do SUS em 1988, de “inserir a Odontologia no SUS” (tema da 1ª
Conferência Nacional de Saúde Bucal, realizada em 1986), assegurar a “Saúde
Bucal como Direito de Cidadania” (tema central da 2ª Conferência Nacional de
Saúde Bucal, realizada em 1993) e fazer valer que serviços públicos
odontológicos estejam disponíveis em todos os municípios para que haja para
todos, no Brasil, “Acesso e Qualidade superando a Exclusão Social” (tema
central da 3ª Conferência Nacional de Saúde Bucal, realizada em 2004).
Embora a
Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB) que foi delineada no início do
primeiro governo Lula (2003-2006) tenha sido apresentada e apoiada pelos
Conselhos Nacionais de Secretarias Estaduais (CONASS) e Municipais (CONASEMS)
de Saúde e politicamente homologada pela 3ª Conferência Nacional de Saúde
Bucal, seja efetivamente uma política de abrangência nacional, foi aprovada
pelo Conselho Nacional de Saúde como sendo apenas “Diretrizes” e não como
uma política específica, a ser executada pelos três poderes da República e
pela três esferas de gestão do Executivo. Assim, alguns Estados e Municípios
passaram a considerar a PNSB, também conhecida como “Programa Brasil
Sorridente”, como apenas “um programa do governo federal”, ao qual poderiam
“aderir” ou não, total ou parcialmente, avançar ou recuar conforme seus
recursos permitam ou de acordo com a vontade predominante em cada
localidade.
Para se
ter uma ideia dos efeitos dessa visão distorcida de uma política “nacional”,
recomendo a leitura da pesquisa de mestrado de Luiz Vicente Souza Martino
(para acessar o texto completo,
clique aqui),
intitulada “A política nacional de saúde bucal em municípios da região
metropolitana de São Paulo, na primeira década do século XXI”. Martino
concluiu que
“(...) no
período de 2006 a 2009, dos 39 municípios da RMSP, 10 não implementaram a
PNSB. Não houve correlação entre adesão à PNSB e riqueza municipal e
capacidade de gasto dos municípios. A adesão à PNSB ocorreu na totalidade
dos municípios (sete) em que o prefeito era filiado ao Partido dos
Trabalhadores, o mesmo do Presidente da República, em 2004. Além do fato de
os municípios terem suas prioridades para as políticas públicas, deve-se
considerar que, previamente ao surgimento da PNSB, tinham suas próprias
definições para intervenção nessa área. Em tais situações, implementar a
PNSB implica reorientações que podem colidir com suas possibilidades e suas
agendas. O fato de a PNSB ser financiada com base em incentivos financeiros
específicos para essa modalidade assistencial, transferidos da União, e
também dos Estados, para os Municípios poderia exercer influência como
indutor da adesão à PNSB, porém o cálculo dos governos municipais não levou
só esta variável em consideração. Além disso, mesmo quando não há colisão de
diretrizes e os incentivos federais não geram dilemas quanto ao que fazer,
reorientações em práticas sociais requerem tempo e recursos até que seus
efeitos sejam sentidos. Neste estudo constatou-se que na RMSP, sob os
critérios adotados, a PNSB encontrou constrangimentos expressivos para se
implantar e consolidar, com os incentivos federais não sendo suficientes
para alterar a situação vigente na região”.
No centro
da resistência à implementação da PNSB, estão variáveis que remetem ao
“valor” atribuído aos investimentos públicos na odontologia pública e
questões político-partidárias. Neste contexto, pesa o fato de a PNSB se
expressar apenas como “diretrizes”, vistas como meras recomendações e,
portanto, politicamente frágeis. Daí a iniciativa de se buscar amparo em
legislação emanada do Congresso Nacional. Poderá não ser a solução de todas
as dificuldades, sabemos. Mas será, sem dúvida, um poderoso apoio ao desafio
do direito à saúde bucal, enfrentado em Estados e Municípios cujas
autoridades pensam políticas públicas à luz do senso comum ou do que
consideram ser a melhor aplicação de recursos públicos.
Os
próximos meses serão decisivos para o destino do PL nº 8.131/2017, já
conhecido como a "Lei da Saúde Bucal" no SUS. Pode ser aprovado rapidamente,
mas também pode ser jogado às traças e ficar “esquecido” na Comissão de
Constituição e Justiça e de Cidadania.
Tem
surgido também uma dúvida sobre a possibilidade de o PL ser arquivado, caso
não seja aprovado pela CCJC, em decorrência da mudança de legislatura. É que
o Regimento da Câmara prevê o arquivamento de todas as proposições que
tenham sido submetidas à deliberação da Câmara e ainda se encontrem em
tramitação, pendentes de apreciação de qualquer comissão ou com parecer
contrário. Parecer contrário, não houve. Mas se a CCJC não decidir, então o
que haveria? O próprio Regimento da Câmara assegura a continuidade da
tramitação a partir de 1º/1/2019, uma vez que não são arquivadas as
proposições que tenham tramitado pelo Senado ou que sejam originárias dele,
como é o caso do PL nº 8.131/2017.
O lado
bom da notícia é que tanto Humberto Costa, no Senado, quanto Jorge Solla, na
Câmara, foram reeleitos e estarão no Congresso Nacional a partir de
1/1/2019.
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